sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Uma parte de mim...

'Uma parte de mim 
é todo mundo;
outra parte ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte 
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte se espanta.
Uma parte de mim
é pemanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim 
é só vertigem;
outra parte
linguagem,
Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
  de vida ou morte - 
  será arte?'

(Ferreira Gullar)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Cantar a Vida


"Mesmo aqueles que cantam desafinado deveriam aplicar-se a cantar, pois é um meio de fazer um trabalho sobre si mesmo. Quando nós cantamos, fisiologicamente há algo de poderoso que, desde a garganta até ao diafragma, se põe em movimento: a voz jorra e, pouco a pouco, nós sentimo-nos libertos das tensões e dos pesos interiores. O que se sabe dos anjos? Eles são representados como criaturas aladas cantando. Tal como as aves. O anjo e a ave estão associados à ideia de leveza, de voo, mas também de canto. Não é isso já para nós um convite para cantarmos a fim de nos libertarmos de tudo o que nos torna pesados? Os humanos poderiam curar-se de tantas perturbações mentais pelo canto! É que as vibrações da voz também têm o poder de desagregar as presenças obscuras que tentam agarrar-se a nós. O canto é uma expressão da vida; a vida em si mesma não é senão um canto. E o que há de mais necessário, de mais vivificador, do que arrancarmo-nos à atmosfera pesada que nos rodeia a fim de nos lançarmos para essas regiões onde tudo é harmonioso, luminoso, leve?"


(Omraam Mikhael Aivanhov)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Mensagens do Deserto


Caminhante antigo,

não se detenha na aparência,

mergulhe além da onda,


além da espuma,

para o ventre da paz,

na caverna do Coração do homem,

Cidade eterna do Espírito.

Vozes do deserto se levantam
para os preparados para ouvir

a mensagem dos camelos,

em lenta e precisa Caravana.
Cabeças altivas,
erguidas para o Céu.

Passos cadentes,

traçando rastros fugidios na areia,
da impermanência.

Disciplina necessária,

para a longa travessia,
que liga Nada ao Nada.


(in Mensagens do Deserto, Editora Diálogos do Ser)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Dando o melhor de si

Mauro era um jovem em busca de experiências e autoconhecimento. E queria como todos os outros jovens da sua idade, ser uma pessoa bem sucedida no mundo. Certa vez participou de um workshop sobre ‘coaching, determinação e liderança’.  Recebeu o convite de uma amiga, que o convenceu que poderia ser bom para se reciclarem e aprenderem coisas novas. Chegaram num enorme salão com um grupo de aproximadamente 100 pessoas. Num dos exercícios, o grupo tinha que correr até um objetivo (orientado pela instrutora), dando cada um o seu máximo, seu 100%.  
Dada a largada, todos correram velozmente. Mauro não estava muito convencido, foi meio que sendo levado pelo grupo, afinal ou corria junto dele ou era atropelado. Durante a corrida ele se contentou de estar apenas correndo bem, consciente do espaço a sua volta, das pessoas que corriam e passavam por ele, e consciente do seu ritmo. No final do exercício, depois que todos já haviam chegado, a instrutora disse que o objetivo era na verdade dar o 100%, mas a atitude da maioria foi de competir. Mauro a princípio viu que estava certo de não entrar naquela corrida desesperada onde as pessoas não se viam, se esbarravam e algumas até caíam, simplesmente por causa de uma ideia maluca que alguém inventou.
Depois de explicado, a instrutora deu a oportunidade aqueles que não deram tudo de si, para que corressem de novo, mas agora seria uma corrida curta. Dessa vez, Mauro se ofereceu prontamente, pois reconhecia que na primeira oportunidade não deu seu melhor. Eram quatro pessoas em linha, que teriam que correr para atingir o propósito de suas vidas! (era essa a proposta hipotética). Mauro saiu atrás, mas no meio do caminho sentiu uma força interior que vinha da altura do coração, que o fez em uma passada ou duas se recuperar, e no fim, para seu espanto (porque não competia com ninguém) havia chegado antes de todos.

A vitória era um motivo de orgulho, uma alegria, mas o mais importante, e o que ele levaria dali, era o aprendizado, que fez com que Mauro refletisse. O ego quer sempre competir. Quer ser melhor do que os outros. Faz crer que você veio ao mundo para conquistar o sucesso. Ele se acha mesmo especial e acredita que você deve ser perfeito. O ego se leva muito a sério. Ele precisa ser o primeiro e ser genial sempre. Mauro não acreditou no comando do ego, que fez com que todos se atropelassem e perdessem o propósito verdadeiro. Se concentrou em vencer a si mesmo e em aprender. Ele não sabia o que passou dentro dos outros naquela corrida. Mas sabia que algo que vinha do coração passou por ele.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Cântico Negro, de José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!