segunda-feira, 10 de maio de 2010

A Ampliação Cognitiva rumo ao Corpo Universal

Por Mariana Montenegro Martins

Um antigo conhecimento vem sendo redescoberto. Àquele que ensina nossos ancestrais sobre a natureza do ser e do meio ambiente que nos rodeia. Ser e meio ambiente formavam para os antigos xamãs uma só realidade indivisível. Todo o conhecimento ensinado pelos antigos versava sobre essa mesma verdade fundamental: a unidade de tudo o que existe.
Em diferentes tradições xamânicas encontramos esse logos, esse saber fundado nas relações, no padrão de ligação entre tudo o que existe. Vivenciamos em aula um exercício, conduzido por Daniele Calmon, em que essa forma de compreender o mundo pôde ser experimentada. Dani sugeriu uma visualização que nos levou a ser a natureza, nos fez sentir no corpo as sensações da água, da terra, dos animais, do ser humano e dos espíritos.
Nos colocamos no lugar dos objetos observados, não observamos de fora, a proposta era sentir como é ser a coisa, o objeto de que pensamos, até nos tornamos a própria floresta, o próprio animal pensado. Sentindo no corpo as sensações de ser uma árvore, a corrente de um rio a jusante a bater sobre as pedras, as tensões de ser a presa de um tigre faminto.
Leonardo Boff fala de um novo paradigma de coexistência na Terra, em que todo conhecer é uma experiência do sentir. Segundo Boff (2000:100), “A dinâmica básica do ser humano é o pathos, é o sentimento, é o cuidado, é a lógica do coração”. Este paradigma de que fala Boff vem substituir o paradigma antropocêntrico, já esgotado e que vem esgotando a vida no planeta, inclusive a vida dos próprios humanos.
O paradigma antropocêntrico não serve nem aos humanos. Em nível social vemos um cenário de desigualdade e sofrimento, não se trata então da raça humana como um todo se pondo como superior a tudo o mais, se trata, considerando os efeitos das desigualdades sociais, de um modelo de sociedade que atende aos interesses apenas de uma minoria de humanos. E que vem a se opor a tudo o mais.
Maturana (1995), biólogo chileno, fala de uma biologia do “amor”. E que seria esta a própria natureza das relações bióticas. Como na natureza, assim também no mundo humano. Existe uma outra possibilidade de organização social que não essa fundada na negação do outro, mas que anterior a ela e mais básica, é a da aceitação do outro como legítimo na convivência. O biólogo fala de um “fundamento biológico do fenômeno social”. O que para tal deve haver amor, que se tem pela aceitação do outro, sem o qual não há socialização, e, consequentemente, não há também humanidade.
A natureza é orgânica nesse fundamento relacional. Quer dizer, seu modo de operação é sistêmico. A diversidade na natureza forma um conjunto integrado, um circuito fechado em que não há perda de energia, tudo é aproveitado e está em permanente dinâmica relacional. Já os humanos precisariam ampliar seu “domínio cognitivo reflexivo”, nas palavras de Maturana, para chegar a esse encontro com o outro.
Saber ser-em-comum. Saber cuidar. Mas como realizar isso se nosso domínio cognitivo reflexivo é competitivo? Como mudar esse padrão, sair desse paradigma antropocêntrico que não serve nem à humanidade como um todo? Existem sim propostas, saídas, alternativas para isso.
Noutra aula, pude pessoalmente levar uma proposta. A Yoga do Som. Que não pôde ser explicada na sua totalidade, mas que tentou pincelar certos princípios. O primeiro deles é a conscientização do que se sente através da auto-observação. Se eu estou consciente de meus movimentos – físico, etérico, emocional, mental, espiritual – dou o primeiro passo no sentido de ampliar meu domínio cognitivo reflexivo.
Em seguida posso escolher como me relacionar com meus movimentos internos e externos. O som é vibração. Cada gesto ou palavra humana tem um som, vibra de uma tal maneira, em determinadas freqüências, que podem ser mais altas ou mais baixas. Quando sinto amor, estou numa vibração alta, de conexão com o mundo ao meu redor. Se estou numa vibração baixa, de tristeza por exemplo, entro em desconexão com o outro, não legitimo ao outro nem a mim mesmo nesse momento.
Todas as emoções são sadias quando fluidas, quando passam, vem, fazem o seu trabalho, e vão, dando lugar a novas. A Yoga do Som oferece meios de mudar padrões celulares através do som quando a emoção não passa, quando permanecemos presos a um padrão energético emocional ou mental repetitivo. Nesse momento o amor, que é uma energia, não encontrará passagem, porque o canal foi obstruído.
O povo Lakota, na América do Norte, na sua medicina, fala às suas células e cantam para curar suas doenças. Para eles, assim como para várias outras tradições ancestrais, nosso corpo sente e pensa. A capacidade da inteligência para eles não é exclusiva do cérebro. Cada célula do corpo possui um receptor inteligente, o que a ciência convencionou chamar de neuropeptídios.
O próprio coração hoje já não é visto pela ciência como uma simples bomba. O campo da Neurocardiologia admite ser o coração um órgão sensorial, um centro muito sofisticado de processamento de informações, e independente do córtex cerebral. E é sabido também que o coração interage com o cérebro e com o resto do corpo através de um campo elétrico.
Na cultura Inca tudo é reciprocidade. Por isso, quando alguém adoece, ou se enche de energia pesada, é invocada a cura através de cantos e orações, danças e ritos catárticos, para que aquela parte do corpo se harmonize com a “pachamama”, desbloqueando a energia retida.
Muitas tradições apontam para um entendimento do corpo como ser sensível e de inteligência. Esse conhecimento que contempla o universal, que vê o “universo numa casca de nós”, como dizia Shakespeare, e antes considerado mágico, já passa a ser também observado pela ciência moderna. Até o filósofo Friedrich Nietzsche fez suas observações vislumbrando os desafios dos espíritos vindouros:
“A humanidade deve se propor metas universais que abarquem todo o planeta (...) Se a humanidade não há de se destruir devido à posse consciente de tais metas universais, deve antes de tudo atingir um conhecimento sem precedentes a respeito das condições básicas geradoras da cultura, como um guia científico para as metas universais. Nisso radica o incrível desafio a ser enfrentado pelos grandes espíritos do século vindouro”.[1]
Nesse rastro está a Ecologia, como ciência da casa (oikos, do grego), que nos desafia a ampliar nosso horizonte cognitivo, desde o nosso corpo até o corpo maior coletivo, planetário e universal. Encontro esse, que só pode se dar, no amor.

domingo, 9 de maio de 2010

A mulher e o mar

"Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela incapacidade humana de ver a curvatura da terra.
Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação a vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada.
A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas.
Mas uma alegria fatal - a alegria é uma fatalidade- já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular.
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda - e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta - e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo - espantada de pé, fertilizada.
Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes grandes, bons para a saúde de um corpo.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo.
O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas - ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas - mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano".

Clarice Lispector - "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres"